quarta-feira, abril 05, 2006

Tu deves ser tu.

-Tu deves ser tu - disse ela.
Foi então que eu percebi que estava diante de um génio. Olhei-a de alto a baixo, mais baixo do que alto, devo dizer, que aquilo nem chegava a metro e meio. E como a inteligência dos génios é contagiosa, respondi:
- Acertaste em cheio: eu sou eu. E, pelos vistos, tu também deves ser tu.
Confesso que, por momentos, ainda alimentei a secreta esperança da a ouvir responder:
- Estás enganada: sou a rainha do Sabá.
Ou então:
- Que ideia! Não se está mesmo a ver que sou o Mário Soares?
(Miterrand, Senhora Thatcher, Felipe Gonzalez, qualquer destes teria igualmente servido - que os meus conhecimentos políticos não iam mais longe.)
Mas não. Limitou-se a encolher os ombros e a dar de novo provas do seu QI de rebentar a escala, fazendo sair da boca esta tirada de ficar na história:
- Pois.
Ia ser um ano maravilhoso. Agora, Mais do que nunca, eu estava certa disso. Com aquela Supermulher atrás de mim a toda a hora, a dormir no mesmo quarto – meu Deus, quando terei um quarto só para mim? -, a sair e a entrar para a mesma escola, a conhecer as minhas amigas e inimigas, a dar graxa às professoras (tinha mesmo ar disso, graxista é bicho que se conhece pelo cheiro). Ia ser o ano de todas as maravilhas.
- A tua cama é aquela – disse eu.
- Preferia esta – respondeu ela.
- Também eu, por isso mesmo é que fiquei com ela.
De resto, esta tem sido sempre a minha cama, não era agora que ia mudar. Até porque faz mal mudar de cama. Fica-se com pesadelos.
- Então para que é que havia mais uma cama no teu quarto?
-Era a cama da Sara.
- Que é que aconteceu? Morreu?
- Pior. Casou-se – disse eu, compondo um ar de artista de cinema farta de banhos de multidão diários.
Ela fez um trejeito meio enjoado e disse com voz de tia Graciosa:
- Para mim, o casamento é a coisa mais maravilhosa que pode acontecer a uma mulher.
- Já desconfiava – murmurei eu.
- E não percebo como é que tu podes dizer essas coisas tão estúpidas.
- Que coisas?
- Isso. Casar ser pior que morrer.
Foi nessa altura que percebi que, para lá de estar diante de um génio, estava diante de um génio com enorme sentido de humor. Só virtudes.
- É porque tu não conheces o Simão – disse eu, reprimindo a custo a gargalhada que há muito queria rebentar da minha boca.
- Quem é o Simão?
- É o marido da Sara.
- Que tem ele?
- Borbulhas na cara toda. E ainda por cima passa o tempo a espremê-las. Parece que nunca se lava.
- Às vezes, muita água também faz mal.
- Pois faz: afoga.
- Não é isso – disse ela, o ar enjoadinho a crescer, a crescer – Faz mal à pele. Aumenta a gordura.
- Quem te disse?
- Li no Ecos da Feliteiras.
Foi nessa altura que percebi que, para lá de estar diante de um génio, e de um génio com grande sentido de humor, estava diante de um génio de grande bagagem cultural e amante da leitura dos clássicos.
- Se calhar o Simão também leu os Ecos das Feliteiras – disse eu.
- Se calhar – disse ela.
A conversa ia subindo de nível a uma velocidade vertiginosa. Mais meia dúzia de tiradas semelhantes e haveria decerto alguma comissão já pronta a propor-nos para um qualquer Nobel.
(…)
Senti vontade de rir, muita, muita vontade de rir, mas ainda não podia ser, ainda não chegara a hora de poder fazer estalar a minha gargalhada que iria limpar o ar daquela poluição toda. Fiz o ar mais sério que me era possível (…) e assegurei que seria um cicerone exemplar na visita guiada às nossas quatro assoalhadas com vista para o beco.(…)

Alice Vieira

Úrsula, a maior

2 comentários:

Eu sou assim! disse...

Genial esse excerto. :D
Consegui largar dois ou três sorrisos enquanto o ia lendo, apesar do meu ego não estar nos melhores dias.

Tenho obrigatoriamente de ler esse livro.

Bejo ;)

inês, a anónima disse...

É o meu livro favorito. Garanto-te que, se o leres, o teu sorriso vai surgir bem mais vezes. É um óptimo remédio para um ego "desconcertado":D